sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

BREVE HISTÓRICO DO MST NO PARÁ

A fundação oficial do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ocorreu em janeiro de 1984, por deliberação do Primeiro Encontro Nacional do MST, realizado no Município de Cascavel, Estado do Paraná. No ano seguinte, aconteceu o seu Primeiro Congresso, no município de Curitiba, no mesmo Estado. Nesses eventos, já participaram vários trabalhadores rurais do Estado do Pará, também com a intenção de instituir o MST neste Estado.[1]
A reconhecida importância histórica, social e política que possui esse Movimento deixa evidente que sua criação não foi resultado de uma simples decisão setorizada de trabalhadores reunidos, mas, como afirma Bernardo Fernandes “o MST é fruto do processo histórico de resistência do campesinato brasileiro”,[2] constituindo-se em parte e continuação da história da luta pela terra.
No Pará a criação do MST contou com a importante influência de alguns sindicatos dos trabalhadores rurais vinculados à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Porém, é a partir de 1989, que vários trabalhadores sem-terra do Pará, e de outros Estados, como de Goiás, Maranhão, Ceará e Pernambuco, passaram a intensificar o processo de organização estrutural do Movimento. Em 10 de janeiro de 1990, o MST realizou sua primeira ocupação no Estado do Pará, ocorrida no município de Conceição do Araguaia, ocasião em que, aproximadamente, cem famílias ocuparam uma fazenda denominada “Ingá”. Em julho desse ano, no mesmo município, cento e cinqüenta famílias ocuparam a fazenda Canarana.[3]
Em julho de 1992, no município de Parauapebas, 548 famílias de sem-terra ocuparam uma fazenda denominada Rio Branco. Após serem imediatamente despejadas, acamparam em frente à prefeitura por um período de cinco meses, momento em que realizaram várias manifestações e negociações. Com a reocupação dessa fazenda, o INCRA resolveu comprar 12.000 ha., da área, transformando-a no assentamento Rio Branco, composto de 250 famílias.[4]
O Primeiro Encontro Estadual do MST foi realizado em 1994. No ano seguinte, os sem-terra ocuparam outra parte da fazenda Rio Branco, forçando o INCRA a adquirir mais 3.383 ha., dessa fazenda, que passou a ser denominada de assentamento Palmares, em homenagem a Zumbi. A concessão de seus títulos foi realizada oficialmente pelo presidente nacional do INCRA, Francisco Graziano, em 5 de novembro de 1995.[5]
Nesse dia, além dos assentados de Palmares, estavam cerca de 1500 famílias reivindicando a desapropriação da fazenda Macaxeira, que, em reunião com Francisco Graziano, receberam deste o comprometimento de fazer vistoria na terra reivindicada. Assim, para aguardar o seu resultado resolveram acampar imediatamente no Centro de Orientação e Formação Agropastoril de Curionópolis, onde permaneceram até 8 de março de 1996, data em que foi divulgado o resultado do laudo de avaliação técnica, que classificou o latifúndio como produtivo, levando os sem-terra a ocuparem a fazenda Macaxeira. E para conquistá-la definitivamente, iniciaram uma caminhada com destino a Marabá, partindo do município de Curionópolis no dia 10 de abril de 1996. No dia 17 de abril, aconteceu o massacre.[6]
Atualmente o MST mantém assentamentos e acampamentos em praticamente todas as regiões do Pará, que de forma organizada se divide em quatro grandes regionais: Cabano, Eldorado, Carajás e Araguaia.[7]
Texto extraído do livro "Os sobreviventes do massacre de Eldorado do Carajás", de Walmir Brelaz. Belém, 2006.

[1] MORISSAWA, Mitsue. 2001. p. 138-139. O evento ocorreu nos dias 21, 22 e 23 de janeiro/1984, nas dependências do Seminário Diocesiano, contando com representantes de 12 estados.
[2] FERNANDES, 2000, p. 49.
[3] Ibid, p. 201.
[4] FERNANDES, 2000, p. 203.
[5]Ibid, p. 205.
[6] Ibid, p. 209.
[7] Informações fornecidas pela coordenação estadual do MST.

GÊNESE DA VIOLÊNCIA AGRÁRIA NO PARÁ E A RELAÇÃO DA OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA COM O MASSACRE DE ELDORADO DO CARAJÁS


O quadro alarmante da violência agrária no Pará é conseqüência do processo histórico do desenvolvimento econômico da região Norte, com fatores sociais e políticos que nos levam a compreender algumas de suas causas, incluindo a relação da exploração minerária e agropecuária nas regiões Sul e Sudeste com o massacre de Eldorado do Carajás.
A política intervencionista do Estado na Amazônia demonstra a ação de seus governantes, que desprezavam intencionalmente os efeitos nefastos em relação à exclusão de milhares de trabalhadores, vítimas desamparadas pelo Poder Público, indutor e responsável pelo atual quadro de conflito agrário. Neste aspecto, de acordo com Violeta Rafkalesfsky Loureiro, o Estado Brasileiro tem sido talvez “o maior promotor dos conflitos no campo”.[1]
O distanciamento geográfico da Amazônia com o resto do país, em decorrência especialmente da falta de acesso rodoviário, provocava o isolamento social e econômico desta região, reduzindo o amazônida a um regime de servidão, mantendo-o em um isolamento que, talvez, nenhum outro sistema econômico haja imposto ao homem.[2]
Portanto, a Amazônia se encontrava praticamente inexplorada e a extensão de sua área inabitada associada à riqueza natural de seu solo e subsolo, entre outros fatores, tornaram-se atrativos de investimento econômico.
Historicamente, a intensificação de sua ocupação é fato recente, ocorrida a partir da segunda metade da década de 60, já no governo militar. E o período de 1965 até os dias atuais, denominado por Pere Petit de “época das grandes transformações”,[3] identifica-se pela exploração das riquezas do subsolo, especificamente das jazidas minerais exploradas no Estado do Pará, apresentando a influência da crescente integração da economia regional ao mercado nacional.
Nesse período, dava-se, ainda, o processo de ocupação demográfica, destacado no governo de Emílio Garrastazu Médici, que incentivou a migração de milhares de trabalhadores das regiões Sul e Sudeste para a Amazônia. Com o lema “Terra sem Homem Para Homem sem Terra”, a meta inicial era receber 100 mil famílias de colonos, e um total de 500 mil famílias num período de 10 anos.
Violeta Loureiro enumera pelo menos cinco razões que justificam o que considera a “integração da Amazônia à economia e à sociedade nacionais”, para em seguida concluir que a ocupação da Amazônia teve sempre 2 vetores: “o econômico – aliança e apoio ao capital; e o geopolítico – defesa da fronteira e ocupação do ‘vazio demográfico’, pelo deslocamento de migrantes procedentes de outros pontos do país, atraindo-os para as fronteiras e espaços interiores da Amazônia.”[4]
Confirmada a necessidade de ocupação da Amazônia, restava ao Governo, portanto, colocá-la em prática. Assim sendo, a construção da rodovia Belém-Brasília, ainda no início da década de 60, destacou-se como um marco inicial do desenvolvimento no Estado do Pará, por refletir um projeto que integraria a Região Norte ao Sudeste brasileiro. E a criação de órgãos federais de desenvolvimento na Amazônia, com especial destaque para a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e Banco da Amazônia S/A (BASA), em 1966, foram medidas concretas importantes de intervenção da Administração Federal, acelerando o processo de expansão das relações capitalistas na Amazônia e sua articulação ao mercado nacional e, sob formas e produtos, ao mercado internacional.[5]
A política de incentivos fiscais e financeiros do Governo Federal visava: (01) atrair instalações de grandes indústrias, ampliando-os para os projetos agropecuários com a criação da SUDAM, com ocupação de grandes áreas de fazenda e agropecuária; (02) incentivar os projetos de colonização nas proximidades da Transamazônica; (03) de conceder incentivos para atividades minerárias para extrair, beneficiar e transportar as riquezas minerais descobertas ainda na década de 60.[6]
É nesse período que se instalam grandes empresas que se apropriaram de terras indígenas e de posseiros, como Volkswagen, Bradesco, Banco Econômico, Bamerindus e Lunardelli.[7]
Por sua vez, a exploração de minérios ocorria com destacada intensidade no Pará, onde estão localizadas as mais importantes reservas de ferro, alumínio, cobre, manganês, ouro, estanho e caulim, o que acarretou com a implantação neste Estado de grandes projetos mínero-metalúrgicos e hidrelétricos.
A partir da segunda metade da década de 80, entrou em operação o Projeto Ferro Carajás e a Albrás, e com o advento da exportação do ferro extraído da Serra do Carajás, inicia-se o Ciclo Econômico do Minério, elevando o Pará, na década de 90, a maior exportador de minério do país.[8]
Na versão do governo federal, a história da ocupação desenvolvimentista da Amazônia coincide pelos fatos, acrescentada pelo entusiasmo e apresentação numérica de indicadores externos de crescimento econômico, a ponto de afirmar que, de 1960 a 1995, a economia da Região Norte aumentou em quase doze vezes o seu tamanho[9].
Porém, a intervenção da Amazônia, da forma como fora implementada, contribuiu para aumentar a desigualdade na distribuição da riqueza e da renda no país[10], traduzindo-se em políticas autoritárias e concentradoras de renda e de terras, que desprezavam a vida, as culturas e os interesses das classes pobres da Amazônia.[11]
A própria construção da rodovia Belém-Brasília ocorreu sem qualquer estudo prévio de conseqüências ambientais, sem medir os impactos sociais e econômicos em relação às pessoas que já habitavam a região, obrigando a reordenação da fraca economia local, tendo como conseqüência imediata “o incremento do interesse pelas terras próximas à rodovia, a grande maioria delas definidas como terras devolutas”.[12] E a política de incentivo fiscal se constituiu numa das principais causas da generalização dos conflitos agrários.[13]
Os trabalhadores que há muito tempo habitavam a Amazônia eram expulsos de suas terras; e milhares de outros que vieram trazidos por promessas governamentais deparavam-se com a realidade que os colocava ao abandono de toda sorte.
No Pará, já na década de 80, os primeiros conflitos ocorreram em virtude da compra de terras por particulares ou empresas para obtenção de incentivo fiscal, adquiridas com posseiro dentro.[14] Assim, a forma violenta para expulsar os posseiros tornou-se a principal causa que levou os municípios do Sudeste do Pará a se converterem, desde o início dos anos de 1980, no cenário de maior número de conflitos agrários e assassinatos de posseiros e suas lideranças sindicais ocorridas no Brasil.[15]
Os grandes projetos minerários, por sua vez, não absorveram a mão-de-obra prometida, ou, posteriormente, valeram-se de novas tecnologias de extração, exigindo menor número de trabalhadores e com conhecimento técnico especializado, fato que propiciou a existência de milhares de trabalhadores sem terra, sem emprego e desprezados pelo Poder Público.
No Pará, encontravam-se nesta situação centenas de famílias que vieram dos Estados vizinhos, como Maranhão, Piauí e Goiás; e do Sul e Sudeste do país, como Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro.
Diante dessa realidade, a organização se apresentava como uma alternativa natural para que os trabalhadores rurais pudessem resistir aos despejos e promover ocupações de terras que julgavam improdutivas. Foi nesse clima de tensão que no início da década de 80 surgiu o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). E também foi nesse período que a violência contra os trabalhadores mais se acentuava.
Inseridos nesse contexto estavam os trabalhadores rurais sem-terra vitimados no massacre de Eldorado do Carajás. Eram, em sua grande maioria, oriundos dos Estados do Maranhão, Goiás, Tocantins, Ceará, Piauí, Minas Gerais e Paraná, que vieram em busca de trabalho nas grandes mineradoras e projetos agropecuários, ou a procura de sua própria terra, mas que se encontravam abandonados pelo Estado.
Na região Sudeste do Pará, centenas de trabalhadores rurais reivindicavam terras e efetuavam ocupações. Desde o início da década de 90, lutavam pela desapropriação da Fazenda Rio Branco, no Município de Parauapebas, a qual foi adquirida oficialmente em 1995. No decurso desses acontecimentos, os trabalhadores envolvidos no massacre reivindicavam a desapropriação da Fazenda Macaxeira - Municípios de Curionópolis e Eldorado do Carajás. Com esse objetivo, promoveram uma caminhada com destino à sede do INCRA do município de Marabá, a qual foi interrompida por uma operação da Polícia Militar do Pará, no dia 17 de abril de 1996, na rodovia PA 150 – “Curva do S” - no município de Eldorado do Carajás.
Como se observa, a dinamicidade coerente e cruel da história correlaciona de forma segura - e como se fossem muito próximas - a política sócio-econômica de ocupação da Amazônia realizada pelo Governo Federal ao massacre de Eldorado do Carajás.

Texto do livro "Os sobreviventes do massacre de Eldorado do Carajás", de Walmir Brelaz. Belém, 2006.


[1] LOUREIRO, Violeta Rafkalesfsky. Amazônia: estado, homem, natureza. 2. ed. Belém: Cejup, 2004. p. 180.
[2] Citado por COSTA, José Marcelino M. da. Impactos econômico-territoriais do atual padrão de ocupação da amazônia: amazônia desenvolvimento ou retrocesso. Belém: cejup, 1992.
[3] PETIT, Pere. Chão de promessas: elite políticas e transformações econômicas do estado do Pará pós-1964. Belém: Paka-Tatu, 2003. [O autor propõe uma subdivisão da história econômica da Amazônia brasileira, para fins analíticos, em três principais períodos: a) Ciclo da Borracha, 1850-1912; b) fase de declínio e posterior crescimento moderado da economia regional, 1912-1965; e c) época das grandes transformações sócio-econômicas da Amazônia, a partir da segunda metade da década de 1960 até os dias de hoje. p. 50.]
[4] LOUREIRO, 2004, p. 71. As cinco razões são: 01. Necessidade de abrir novos mercados consumidores para os produtos industrializados do Centro-Sul do país; 02. A necessidade de expandir os mercados de trabalho, de forma a poder empregar os excedentes populacionais do Nordeste; 03. A necessidade de aproveitar o potencial mineral, madeireiro e pesqueiro da Amazônia; 04. A procura de novas terras por investidores do Sul; 05. Os motivos designados pelo Estado como sendo de “segurança nacional” também foram importantes na ocupação da região; as organizações de base camponesa do Nordeste, extintas nos anos 60, como as Ligas Camponesas, haviam deixado nos meios militares o temor de que novos movimentos sociais no campo se desenvolvessem sob a forma de guerrilha rural; portanto, os setores militares exigiam a ocupação da Amazônia pelo capital, antes que os segmentos populares do campo o fizessem, ou que estrangeiros entrassem nela pelas fronteiras do Brasil com os outros países que formam a Pan-Amazônia (constituída pela parte brasileira, que é a mais extensa e a área amazônica dos 5 países e, na época, 3 territórios coloniais ou departamentos de além-mar, como o Brasil faz fronteira ao norte).
[5] PETIT, 2003. p. 25.
[6] PETIT, 2003. p. 25.
[7] FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. p. 202.
[8] PETIT, 2003, p. 97,98 e 102.
[9] SUDAM/FADE. Trinta e cinco anos de crescimento econômico na Amazônia: 1960/1995. Belém: SUDAM/FADE, 1997.
[10] PETIT, 2003. p. 25.
[11] LOUREIRO, 2004. p. 73.
[12] PETIT, op. cit. 25
[13] LOUREIRO, 2004, p. 180.
[14] Ibidem, p. 193
[15] PETIT, 2003. p. 206.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

17 DE ABRIL DE 1996 +

Versão das vítimas*

A quarta-feira do dia 17 de abril de 1996 amanheceu com um sol intenso. Seguindo a rotina, os sem-terra se levantaram entre 4 e 5h da manhã. Os coordenadores se ocupavam da seleção das pessoas que embarcariam nos ônibus, com preferência para as mulheres, crianças e idosos. O restante seguiria em caminhada até Marabá.
Às 11h, compareceu ao local o oficial da PM tenente Jorge Nazaré Araújo dos Santos e “informou ao acampamento que o acordo estava desfeito. Nada mais seria entregue. Nem ônibus nem comida”.[1] E a acrescentou: “foi impossível atender a pauta (...) Se fez de coitado e disse: pois é gente, é uma pena, mas vocês têm que fazer pressão”.[2]
Um fato estranho ocorreu às 12h. Surgiu no local um caminhão “gaiola” transportando apenas um boi. O motorista Manuel Lima de Souza o colocou atravessado no meio da pista e se infiltrou na manifestação dos sem-terra.[3] Antônio Alves de Oliveira ainda lembra, com desconfiança, desse exato momento:

“vocês não vão ocupar? Já estou fazendo uma barricada! Mas sendo que a barricada seria pra matar nós. Esse cara devia tá sabendo de toda trama”.[4]

No mesmo horário, os sem-terra resolveram ocupar novamente a rodovia PA-150, precisamente no trecho da “Curva do S”. Uma parte de 16 grupos ocupou a rodovia no sentido de Parauapebas e outra de igual número ocupou a área em direção a Marabá, com uma distância entre si de cem metros.
Aproximadamente às 16h, chegou do município de Parauapebas a tropa comandada pelo major José Maria Pereira Oliveira, composta de 69 policiais fortemente armados.[5] No local, mantiveram-se em silêncio a uma distância de aproximadamente 150 metros, apenas observando.[6]
E a tensão começava a tomar conta dos sem-terra. Rubenita Justiniano declarou que não estavam se preparando para qualquer confronto, tanto que a propalada barricada de arroz que passou a ser divulgada como uma forma de demonstração de que os sem-terra estavam se armando para um confronto, nunca existiu. Eram volumes de alimentação que estavam à beira da estrada.[7]
Às 16h e 30 min, chegou a tropa do 4.º Batalhão da Polícia Militar de Marabá composta por 85 policiais, comandada pelo Coronel Mário Colares Pantoja, com o propósito de desobstruir a pista, conforme posteriormente justificado pelo Secretário de Segurança Pública do Pará Paulo Sette Câmara: “porque a estrada não poderia ficar obstruída e a desobstrução dela era uma necessidade óbvia”.[8]
Em seguida, sem manter qualquer contato verbal com os sem-terra, começaram a atirar contra estes, inicialmente para cima e depois para baixo, além de efetuarem lançamento de bombas de efeito moral.
E chegaram e deram duas rajadas pra cima (...) E nós levantamos as mãos pedindo paz, e dizendo que não queria guerra e sim terra.[9]
O ataque imediato da tropa que estava do lado de Marabá, sem qualquer diálogo, é sustentado por várias outras vítimas:

“Os policiais chegaram e começaram a fazer fogo na gente, matando mesmo, logo no começo”.[10]

“A hora que eles chegaram foi logo atirando, mas naquela hora atiraram pra cima. Aí, depois que a gente encostou, ele falou: mata essas desgraças toda, gente. Aí disgramou a tiroteia (...)”[11]

Após esse primeiro ato, os sem-terra correram. O primeiro a morrer foi Amâncio Rodrigues dos Santos[12]. Um lavrador de 42 anos. Ele era surdo, e provavelmente por este motivo não ouviu os disparos e os gritos para se afastar do local. “A gente gritava para ele correr, mas não adiantava. Os soldados chegaram perto e atiraram na cabeça.”[13]

(...) quando recuamos esse Amâncio ficou adiantado dos outros, porque era surdo, não tava prestando atenção. Aí os homens foram e mataram ele (...) derrubaram ele e bateram nele. E depois me atiraram também e eu caí na pista (...) O surdo morreu por isso, logo na frente primeiro do que todos (...) Primeiro ele atirou na perna dele e ele caiu, quando ele caiu, mandaram ele soltar a faca que ele tinha na mão, ele não soltou e atiraram na cabeça dele e mataram. Ele prestava muito era pra bater num tamborzinho e dançar. Ele era alegre. No grupo dele era uma festa direto com ele.[14]

Por sua vez, os sem-terra que estavam do lado de Parauapebas correram de forma inversa. Nesse momento avançam com paus e pedras contra os policiais.
As pessoas dizem: por que vocês avançaram? É porque esse grupo que tava do lado de Parauapebas, ouviu a rajada e correu pra saber o que era, certo? E esse grupo já vinha de lá correndo, aí começou a tumultuar. Quando nós corremos, esse grupo do Major Oliveira tava tudo entrincheirado já, aí partiram pra cima atirando também. Esse grupo que saiu atirando, que não aparece na televisão, foi o que mais matou (...) só do meu grupo morreram cinco... e dois foram baleados ... eu só não fui morta porque eu saí da posição (...)[15]

Do outro lado, os policiais da tropa de Parauapebas passaram a atacar imediatamente. E segundo várias vítimas, foram os que mais agiram com violência, foram os que mais mataram.
Domingos dos Reis da Conceição, que foi atingido com um tiro na perna, acusa os policiais de Parauapebas, dizendo que foram “os mais perversos, atiravam para matar mesmo.”[16] “O pessoal de Marabá matou muito pouco, agora o resto foi matado pelo pessoal de Parauapebas”.[17]
De acordo com o Ministério Público, com base em depoimentos de várias testemunhas ouvidas durante a instrução processual, inclusive, o cinegrafista Oswaldo Araújo, “para o lado da tropa de Parauapebas é que tombaram a maioria dos mortos e feridos”.[18]
É difícil imaginar as razões e emoções que motivaram os sem-terra, munidos apenas de paus e pedras, a partirem para cima de policiais fortemente armados. Em seus depoimentos, observa-se que foram envolvidos por um sentimento, misto de coragem e revolta, sobretudo, ao verem alguns de seus companheiros feridos, atirados ao chão. “Ninguém teve tempo de ter medo nesse momento (...) ninguém tinha noção de nada, neguinho corria é pra cima mesmo. É difícil você tá no meio de um fogo desse aí. Você tá vendo um irmão caído (...) você vai, mesmo que morra também”.[19]
Após tomarem consciência de sua infinita desvantagem, os sem-terra correram em direção à mata, sendo perseguidos pelos policiais.
Do instante da ação militar, muitos sem-terra ainda guardam recordações que impressionam, inclusive, pelos detalhes.
A polícia atirava no nosso rumo e gritava que ia tocar fogo nos barracos. O jeito foi correr, mesmo ferido. Só quando corri mais de dois quilômetros e vi que não corria mais perigo é que comecei a sentir dores e vi que estava ferido na virilha. A minha coxa eu nem sentia mais de tanta dor.[20]

Na hora que mataram o primeiro, do lado de Marabá, os homens que tava do meu lado correu tudo pra lá pra vê o que tava acontecendo. E as mulheres com as crianças correram para o lado que eu tava. Naquela hora a gente tava na segurança pedindo pra eles não atirar (...). E que eu lembro muito bem é quando eles entraram em ação atirando, até quando um companheiro que tava perto de mim, que era o Altamiro, quando ele caiu, aí ele pediu para levantar ele que ele tava baleado. Foi o momento que eu peguei ele, foi a hora que eles me atingiram com uma bala nas costas.[21]

Um momento que eu não esqueço, também nunca, foi quando nós entrou naquela casa, já escondendo deles mesmo. E eles veio atrás de nós e quebrou a porta e entrou pra dentro, nós tava em umas cinqüenta pessoas, só mulher e criança, nesse meio tinha uns dois homens. E eles pegou e botou nós pra fora e botou nós todo deitado, sem direito a olhar para lado nenhum. E nós escutava só tiro, só tiro. E aí eu vi eles arrastando as pessoas, as pessoas corriam e eles corriam, já as pessoas baleadas. Eles arrastavam pelas estradas e acabavam de matar. Muitas pessoas podiam ter sobrevivido, mas elas estavam baleadas e eles arrastavam e acabavam de matar. Foi um momento muito triste que eu acho que nunca esqueço daquele momento terrível. E aí, depois que a gente viu um tanto de gente morta, eles mandou a gente correr e não olhasse para trás.[22]

Alguns trabalhadores rurais relatam que também foram espancados e humilhados por policiais.


“Me espancaram, me colocaram no meio da pista, me bateram com o cacetete nas costas, me chutaram na cabeça, e daí só me bateram direto, me chamando de bandido, sem vergonha, assassino”.[23]

Eu não caí no local, eu corri, quando eles já me pegaram mandaram eu deitar no chão, e colocaram a arma na minha cabeça. E um perguntou para outro: acaba de matar essa desgraça, e ele falou não, manda ele correr. E ele mandou levantar e correr e ir direto no hospital dizer que era uma bala vadiada que me pegou. Eu pedi para eles deixarem eu ir pela estrada, pois eu não agüentava andar mais pelo meio do mato. Ele falou tem três minutos pra tu e dois já passou.[24]

A polícia juntou todo mundo que estava num barraco e mandou a gente deitar na lama. Depois, quando eles quiseram, disseram pra gente correr pra dentro do mato.[25]
No início dos tiros, um dos líderes mais expressivos, Oziel Alves Pereira, no carro som pedia calma: “não corram que é bala de festim, ninguém sai da pista”.[26] Entretanto, quando percebeu a gravidade dos fatos, refugiou-se em uma cabana próxima do local.
“Aí quando ele viu morrer muita gente, foi que ele falou que ele não era covarde, ele tinha que ir com os companheiros dele, foi no momento que a polícia pegou ele”.[27]
Em seguida, foi arrastado pelos policiais e executado. “Foi atingido quatro vezes por arma de fogo na cabeça”.[28] O “Oziel foi executado pelo MAJOR PM OLIVEIRA, com dois tiros de revólver”.[29]

Ele tava com um brinquinho na orelha, ele tirou o brinquinho e entregou pro meu menino e disse: “olha você guarda esse brinco, se eu voltar você me entrega, se eu nunca mais voltar você guarda por lembrança”. E ele saiu com ele no meio da estrada, um bateu com o cabo de uma arma na cabeça e ele caiu e o outro atirou. Pegou no cabelo dele, suspendeu e atirou.[30]

Uma das histórias mais impressionantes ocorreu com o lavrador Inácio Pereira, 56, pai de dezesseis filhos, dentre os quais Raimundo Lopes Pereira, morto no massacre.
Do momento do massacre ele ainda lembra: “eu vi o meu menino morto e eles queriam matar minha menina, e nessa hora parece que o mundo acabou pra mim”.[31] Desmaiado, confundido com um morto, foi arrastado pelo chão e jogado no mato, em seguida o colocaram no carro e outra pessoa por cima dele.

Eu embaixo desses mortos (...) nessa hora o peão que estava em cima de mim gemeu. E alguém disse: “olha, aqui tem um gemendo, o que a gente faz com ele? Você não sabe, não? É matar!”. E ele voltou e deu um tiro. Me banhou todinho de sangue e com isso eu acabei de morrer de novo.[32]

Logo após o acontecido, as vítimas foram levadas ao hospital mais próximo para análises preliminares e identificações, quando, então, descobriram que Inácio Pereira estava vivo.
A desobstrução da rodovia durou aproximadamente 15 minutos, entretanto, a operação no local aproximou-se das 19 h. “Até seis e meia ainda tava queimando tiro”.[33]
Os policiais “organizaram” em fila os mortos do massacre, cobrindo-os com lona preta na beira da estrada, para logo em seguida levá-los ao município de Curionópolis.[34]

* Texto retirado do livro "Os sobreviventes do massacre de Eldorado do Carajás", de Walmir Brelaz, 2006-Belém.

[1] O MASSACRE de Eldorado, 1999, p 15. No mesmo sentido, consta na Denúncia do MP (Processo no 786/96, fl. 41).
[2] Rubenita Justiniano.
[3] Não se teve mais notícias desse motorista.
[4] Antônio Alves. Para o Ministério Público, em sua Denúncia (p. 42), foram os sem-terra que colocaram propositadamente o caminhão.
[5] Foram entregues ao Instituto Médico Legal as seguintes armas das duas tropas: 4 metralhadoras; 4 submetralhadoras; 5 revólveres Taurus calibre 38; e 28 fuzis tipo mosquefal, calibre 7,62 mm. Segundo a denúncia do Ministério Público, a tropa veio em dois ônibus da empresa Transbrasiliana, uma camionete D-20 e um Volkswagen gol. Processo no 786/96.
[6] Rubenita Justiniano.
[7] Ibidem.
[8] Jornal O LIBERAL, Painel, 19 maio 1996, p. 03.
[9] Josimar Pereira. Depoimento verbal ao autor, em 09 Jun. 2004.
[10] Manoel Pereira da Silva. Jornal O LIBERAL, Belém, 20 maio 1996, Caderno Especial, p. 8,
[11] Gabriel Fagundes Moreno.
[12] FRENETTE, Marcos. O dia do massacre. Revista Caros Amigos. n. 12, p. 5, abr. 2002. Fato confirmado por vários depoimentos.
[13] Francisco Clemente de Oliveira. Revista Veja.
Disponível em: <
http://www.veja.abril.com.br/idade/em_dia/carajas_capa.html>. Acesso em 17.09.2004.
[14] Josimar Pereira.
[15] Rubenita Justiniano.
[16] Jornal O LIBERAL, Painel, 19 maio 1996, p. 03.
[17] Josimar Pereira.
[18] Processo no 786/96 - Alegações Finais do Ministério Público. Disponível em:
Acesso em: 13.03.04
[19] Antônio Alves.
[20] Jurandir Gomes dos Santos. Jornal O LIBERAL, Painel, 19 maio 1996, p. 3.
[21] Alcione Ferreira da Silva.
[22] Maria Abadia Barbosa.
[23] Francisco Vieira Martins.
[24] Alcione Ferreira da Silva.
[25] Maria Raimunda. Jornal O LIBERAL, Especial, 20 de maio 1996, p. 8.
[26] Rubenita Justiniano.
[27] Antônio Alves.
[28] Antônio Alves. Jornal O LIBERAL, Especial, 20 de maio 1996, p. 9.
[29] Luiz Vanderley Pereira (Processo no 786/96. Denúncia do MP, fl. 46).
[30] Maria Abadia.
[31] Inácio Pereira.
[32] Ibidem.
[33] Antônio Alves. O coronel Mario Colares Pantoja, em entrevista concedida ao jornal O LIBERAL, de 02 de outubro de 2005, afirmou que o massacre “não durou mais do que cinco minutos”.
[34] Outros fatos ocorridos no momento do massacre ainda serão relatados neste trabalho.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Relembrando

No dia 17 de abril completam 12 anos do MASSACRE DE ELDORADO DO CARAJÁS. Assim, a partir de hoje vamos relembrar - para nunca esquecer - esse triste momento.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

(Re)início

No dia 21 de fevereiro, um grupo de profissionais da medicina foram ao Acampamento 17 de abril, em Eldorado do Carajás, para fazer novas perícias nos sobreviventes. Segundo, Antônio Alves - Índio - o trabalho foi muito bem iniciado. Vamos aguardar ...