sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

GÊNESE DA VIOLÊNCIA AGRÁRIA NO PARÁ E A RELAÇÃO DA OCUPAÇÃO DA AMAZÔNIA COM O MASSACRE DE ELDORADO DO CARAJÁS


O quadro alarmante da violência agrária no Pará é conseqüência do processo histórico do desenvolvimento econômico da região Norte, com fatores sociais e políticos que nos levam a compreender algumas de suas causas, incluindo a relação da exploração minerária e agropecuária nas regiões Sul e Sudeste com o massacre de Eldorado do Carajás.
A política intervencionista do Estado na Amazônia demonstra a ação de seus governantes, que desprezavam intencionalmente os efeitos nefastos em relação à exclusão de milhares de trabalhadores, vítimas desamparadas pelo Poder Público, indutor e responsável pelo atual quadro de conflito agrário. Neste aspecto, de acordo com Violeta Rafkalesfsky Loureiro, o Estado Brasileiro tem sido talvez “o maior promotor dos conflitos no campo”.[1]
O distanciamento geográfico da Amazônia com o resto do país, em decorrência especialmente da falta de acesso rodoviário, provocava o isolamento social e econômico desta região, reduzindo o amazônida a um regime de servidão, mantendo-o em um isolamento que, talvez, nenhum outro sistema econômico haja imposto ao homem.[2]
Portanto, a Amazônia se encontrava praticamente inexplorada e a extensão de sua área inabitada associada à riqueza natural de seu solo e subsolo, entre outros fatores, tornaram-se atrativos de investimento econômico.
Historicamente, a intensificação de sua ocupação é fato recente, ocorrida a partir da segunda metade da década de 60, já no governo militar. E o período de 1965 até os dias atuais, denominado por Pere Petit de “época das grandes transformações”,[3] identifica-se pela exploração das riquezas do subsolo, especificamente das jazidas minerais exploradas no Estado do Pará, apresentando a influência da crescente integração da economia regional ao mercado nacional.
Nesse período, dava-se, ainda, o processo de ocupação demográfica, destacado no governo de Emílio Garrastazu Médici, que incentivou a migração de milhares de trabalhadores das regiões Sul e Sudeste para a Amazônia. Com o lema “Terra sem Homem Para Homem sem Terra”, a meta inicial era receber 100 mil famílias de colonos, e um total de 500 mil famílias num período de 10 anos.
Violeta Loureiro enumera pelo menos cinco razões que justificam o que considera a “integração da Amazônia à economia e à sociedade nacionais”, para em seguida concluir que a ocupação da Amazônia teve sempre 2 vetores: “o econômico – aliança e apoio ao capital; e o geopolítico – defesa da fronteira e ocupação do ‘vazio demográfico’, pelo deslocamento de migrantes procedentes de outros pontos do país, atraindo-os para as fronteiras e espaços interiores da Amazônia.”[4]
Confirmada a necessidade de ocupação da Amazônia, restava ao Governo, portanto, colocá-la em prática. Assim sendo, a construção da rodovia Belém-Brasília, ainda no início da década de 60, destacou-se como um marco inicial do desenvolvimento no Estado do Pará, por refletir um projeto que integraria a Região Norte ao Sudeste brasileiro. E a criação de órgãos federais de desenvolvimento na Amazônia, com especial destaque para a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e Banco da Amazônia S/A (BASA), em 1966, foram medidas concretas importantes de intervenção da Administração Federal, acelerando o processo de expansão das relações capitalistas na Amazônia e sua articulação ao mercado nacional e, sob formas e produtos, ao mercado internacional.[5]
A política de incentivos fiscais e financeiros do Governo Federal visava: (01) atrair instalações de grandes indústrias, ampliando-os para os projetos agropecuários com a criação da SUDAM, com ocupação de grandes áreas de fazenda e agropecuária; (02) incentivar os projetos de colonização nas proximidades da Transamazônica; (03) de conceder incentivos para atividades minerárias para extrair, beneficiar e transportar as riquezas minerais descobertas ainda na década de 60.[6]
É nesse período que se instalam grandes empresas que se apropriaram de terras indígenas e de posseiros, como Volkswagen, Bradesco, Banco Econômico, Bamerindus e Lunardelli.[7]
Por sua vez, a exploração de minérios ocorria com destacada intensidade no Pará, onde estão localizadas as mais importantes reservas de ferro, alumínio, cobre, manganês, ouro, estanho e caulim, o que acarretou com a implantação neste Estado de grandes projetos mínero-metalúrgicos e hidrelétricos.
A partir da segunda metade da década de 80, entrou em operação o Projeto Ferro Carajás e a Albrás, e com o advento da exportação do ferro extraído da Serra do Carajás, inicia-se o Ciclo Econômico do Minério, elevando o Pará, na década de 90, a maior exportador de minério do país.[8]
Na versão do governo federal, a história da ocupação desenvolvimentista da Amazônia coincide pelos fatos, acrescentada pelo entusiasmo e apresentação numérica de indicadores externos de crescimento econômico, a ponto de afirmar que, de 1960 a 1995, a economia da Região Norte aumentou em quase doze vezes o seu tamanho[9].
Porém, a intervenção da Amazônia, da forma como fora implementada, contribuiu para aumentar a desigualdade na distribuição da riqueza e da renda no país[10], traduzindo-se em políticas autoritárias e concentradoras de renda e de terras, que desprezavam a vida, as culturas e os interesses das classes pobres da Amazônia.[11]
A própria construção da rodovia Belém-Brasília ocorreu sem qualquer estudo prévio de conseqüências ambientais, sem medir os impactos sociais e econômicos em relação às pessoas que já habitavam a região, obrigando a reordenação da fraca economia local, tendo como conseqüência imediata “o incremento do interesse pelas terras próximas à rodovia, a grande maioria delas definidas como terras devolutas”.[12] E a política de incentivo fiscal se constituiu numa das principais causas da generalização dos conflitos agrários.[13]
Os trabalhadores que há muito tempo habitavam a Amazônia eram expulsos de suas terras; e milhares de outros que vieram trazidos por promessas governamentais deparavam-se com a realidade que os colocava ao abandono de toda sorte.
No Pará, já na década de 80, os primeiros conflitos ocorreram em virtude da compra de terras por particulares ou empresas para obtenção de incentivo fiscal, adquiridas com posseiro dentro.[14] Assim, a forma violenta para expulsar os posseiros tornou-se a principal causa que levou os municípios do Sudeste do Pará a se converterem, desde o início dos anos de 1980, no cenário de maior número de conflitos agrários e assassinatos de posseiros e suas lideranças sindicais ocorridas no Brasil.[15]
Os grandes projetos minerários, por sua vez, não absorveram a mão-de-obra prometida, ou, posteriormente, valeram-se de novas tecnologias de extração, exigindo menor número de trabalhadores e com conhecimento técnico especializado, fato que propiciou a existência de milhares de trabalhadores sem terra, sem emprego e desprezados pelo Poder Público.
No Pará, encontravam-se nesta situação centenas de famílias que vieram dos Estados vizinhos, como Maranhão, Piauí e Goiás; e do Sul e Sudeste do país, como Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro.
Diante dessa realidade, a organização se apresentava como uma alternativa natural para que os trabalhadores rurais pudessem resistir aos despejos e promover ocupações de terras que julgavam improdutivas. Foi nesse clima de tensão que no início da década de 80 surgiu o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). E também foi nesse período que a violência contra os trabalhadores mais se acentuava.
Inseridos nesse contexto estavam os trabalhadores rurais sem-terra vitimados no massacre de Eldorado do Carajás. Eram, em sua grande maioria, oriundos dos Estados do Maranhão, Goiás, Tocantins, Ceará, Piauí, Minas Gerais e Paraná, que vieram em busca de trabalho nas grandes mineradoras e projetos agropecuários, ou a procura de sua própria terra, mas que se encontravam abandonados pelo Estado.
Na região Sudeste do Pará, centenas de trabalhadores rurais reivindicavam terras e efetuavam ocupações. Desde o início da década de 90, lutavam pela desapropriação da Fazenda Rio Branco, no Município de Parauapebas, a qual foi adquirida oficialmente em 1995. No decurso desses acontecimentos, os trabalhadores envolvidos no massacre reivindicavam a desapropriação da Fazenda Macaxeira - Municípios de Curionópolis e Eldorado do Carajás. Com esse objetivo, promoveram uma caminhada com destino à sede do INCRA do município de Marabá, a qual foi interrompida por uma operação da Polícia Militar do Pará, no dia 17 de abril de 1996, na rodovia PA 150 – “Curva do S” - no município de Eldorado do Carajás.
Como se observa, a dinamicidade coerente e cruel da história correlaciona de forma segura - e como se fossem muito próximas - a política sócio-econômica de ocupação da Amazônia realizada pelo Governo Federal ao massacre de Eldorado do Carajás.

Texto do livro "Os sobreviventes do massacre de Eldorado do Carajás", de Walmir Brelaz. Belém, 2006.


[1] LOUREIRO, Violeta Rafkalesfsky. Amazônia: estado, homem, natureza. 2. ed. Belém: Cejup, 2004. p. 180.
[2] Citado por COSTA, José Marcelino M. da. Impactos econômico-territoriais do atual padrão de ocupação da amazônia: amazônia desenvolvimento ou retrocesso. Belém: cejup, 1992.
[3] PETIT, Pere. Chão de promessas: elite políticas e transformações econômicas do estado do Pará pós-1964. Belém: Paka-Tatu, 2003. [O autor propõe uma subdivisão da história econômica da Amazônia brasileira, para fins analíticos, em três principais períodos: a) Ciclo da Borracha, 1850-1912; b) fase de declínio e posterior crescimento moderado da economia regional, 1912-1965; e c) época das grandes transformações sócio-econômicas da Amazônia, a partir da segunda metade da década de 1960 até os dias de hoje. p. 50.]
[4] LOUREIRO, 2004, p. 71. As cinco razões são: 01. Necessidade de abrir novos mercados consumidores para os produtos industrializados do Centro-Sul do país; 02. A necessidade de expandir os mercados de trabalho, de forma a poder empregar os excedentes populacionais do Nordeste; 03. A necessidade de aproveitar o potencial mineral, madeireiro e pesqueiro da Amazônia; 04. A procura de novas terras por investidores do Sul; 05. Os motivos designados pelo Estado como sendo de “segurança nacional” também foram importantes na ocupação da região; as organizações de base camponesa do Nordeste, extintas nos anos 60, como as Ligas Camponesas, haviam deixado nos meios militares o temor de que novos movimentos sociais no campo se desenvolvessem sob a forma de guerrilha rural; portanto, os setores militares exigiam a ocupação da Amazônia pelo capital, antes que os segmentos populares do campo o fizessem, ou que estrangeiros entrassem nela pelas fronteiras do Brasil com os outros países que formam a Pan-Amazônia (constituída pela parte brasileira, que é a mais extensa e a área amazônica dos 5 países e, na época, 3 territórios coloniais ou departamentos de além-mar, como o Brasil faz fronteira ao norte).
[5] PETIT, 2003. p. 25.
[6] PETIT, 2003. p. 25.
[7] FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. p. 202.
[8] PETIT, 2003, p. 97,98 e 102.
[9] SUDAM/FADE. Trinta e cinco anos de crescimento econômico na Amazônia: 1960/1995. Belém: SUDAM/FADE, 1997.
[10] PETIT, 2003. p. 25.
[11] LOUREIRO, 2004. p. 73.
[12] PETIT, op. cit. 25
[13] LOUREIRO, 2004, p. 180.
[14] Ibidem, p. 193
[15] PETIT, 2003. p. 206.

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